É hora de pensarmos sobre as condições às quais somos submetidos em nome da arte

Em 1994, molecote, abri um show da banda de EBM / Industrial da Simbolo em uma casa no interior de São Paulo.
Concluída nossa apresentação, enquanto o resto da banda tomava suas cervejas na casa, fui para o camarim e me deitei no chão, com a cabeça pousada em uma mochila de equipamentos, que fazia a função de travesseiro.
Eis que entra na saleta Martin, fundador da Simbolo, então um projeto reconhecido e consolidado no meio alternativo brasileiro. Ao me ver, pergunta:
“ O que você está fazendo?”
“Vou tentar dormir um pouco” – respondi.
“Desista. A adrenalina que toma conta da gente leva um tempo para baixar. Impossível você conseguir dormir agora“.
Aceitei a lição, compreendendo estar na frente de uma lenda underground e conhecedor da minha condição de iniciante, deixando de lado a ideia de uma soneca. Aproveitando aquele início de contato, perguntei:
“Você vive de música?”
“Não” – me respondeu – “eu vivo para a música. Trabalho para arrumar dinheiro para investir no Simbolo“.
O motivo da tentativa de cochilo: eu precisaria trabalhar poucas horas depois. Entre o camarim empoeirado e o meu emprego, havia ainda uma viagem de carro de aproximadamente duas horas.
Corta para o final dos anos 90. Trouxe a Sao Paulo um DJ de São Francisco, chamado Jay J., produtor amado de house music. A festa aconteceu em um dia 22 de dezembro e foi a última gig de uma turnê de quase seis meses do artista. Ele estava esgotado e ansioso por retornar para casa, após tanto tempo fora, comendo em restaurantes, vivendo com gente estranha e dormindo em hotéis, ora confortáveis, ora não. O cara estava literalmente acabado.
Enquanto isso, nos botecos da cidade, discutia-se efusivamentesobre a “frescura” dos Rolling Stones, que exigiam que seu cozinheiro particular viajasse com eles nas turnês. Muitos anos depois, ao ler a biografia de Keith Richards (Vida), descobri que o chef cozinhava para ele a mesma comida que sua família comia quando ele era um adolescente, a tal shepherd’s pie. O luxo, possível somente para “superstars” como os Stones, era necessário para que todos tivessem uma alimentação constante, diferente das porções de batatas fritas, pizzas ou jantares no Subway, que o resto de nós tem de enfrentar na estrada.
Pouco antes da pandemia, me lembro de uma cena em que fiquei parado, pasmo, com aquele ponto de interrogação na cabeça, ao olhar o cartaz de turnê de uma banda norte-americana que passava pelo Brasil, cujo nome agora me escapa. Quinze shows em dezesseis dias, passando por cinco países diferentes da América do Sul. Visualizei o mapa do continente e, ao repassar as datas de locais do cartaz, pude notar o zigue-zague que a banda faria em aviões. Era assustador.
Quem vai para a estrada compreende. Durante uma conversa madrugada adentro com minha mulher, entusiasta de viagens, me lembro de seu olhar surpreso, quase indignado, quando lhe contei a quantidade de cidades que conheci apenas por algumas horas. “Mas porquê não ficou um pouco mais, para conhecê-las melhor?”, me perguntou.
Em uma turnê, o dinheiro dos cachês é depositado em um balde furado. A cada minuto, o dinheiro vaza pelo buraco. É preciso correr. E isso nos obriga a planejar as rotas mais malucas possíveis para evitar o desperdício. Fugir para o trem logo após o show, ou após poucas horas de sono (isso se você não for para o famoso ‘after’), para poder chegar em outra cidade no tempo exato de se encontrar com os produtores da próxima gig, pois assim paramos de gastar com comida e hospedagem.
Agora, vamos parar um pouco de falar sobre viagens e voltar nossa atenção para o estágio em que somos artistas locais. A situação ainda fica pior.
Fazemos longas viagens de carro, obrigados a chegar várias horas antes do evento para a montagem de equipamento e passagem de som. Com tudo pronto, hora de esperar em um camarim apertado, comendo a pior comida que existe (quem aqui não teve de enfrentar os horríveis lanches de metro apodrecendo no calor), bebendo porque não há um sofá livre para descansar, usando banheiros sem papel higiênico e esperando por aquela hora mágica em que tudo acontece (o show!!!), gerando a descarga de fúria, de adrenalina, que tanto amamos. Nem pense em aparentar cansaço, a coisa tem de ser catártica. O público não espera menos do que isso.
Fim da última música. A única coisa que você não quer é entrar em um carro para fazer a viagem de volta (ou para a próxima cidade). Mas você não tem escolha.
Importante pontuar: nós romantizamos este perrengue. Eu sempre quis passar por isso. Viver o “sonho do rock’n’roll”.
Hoje não volto mais de uma gig, mesmo que a cidade fique a cinquenta quilômetros de casa e eu ser obrigado a acabar a noite no zero a zero, gastando o suado (literalmente) ganho da noite com hospedagens. Mas já perdi a conta das vezes em que parei de madrugada em postos de gasolina para dormir um pouco porque não estava conseguindo ficar de olhos abertos no volante.
O que passa despercebido ao público é que aquela apresentação de duas horas no palco demanda um “turno” de oito, dez horas, considerando o momento de sair e de retornar ao lar.
Dá para descer mais? Dá sim. Existem os músicos que, como o Martin do Símbolo, tem um outro emprego, o tal “day job” que dizem por aí. Músicos saem do trabalho às pressas, correm para casa, tomam um banho rápido, vestem o uniforme de rockstar e se mandam para a casa de shows. Se o compromisso for durante a semana, tem trabalho no outro dia também. Para ganhar dinheiro para gastar na banda.
Pouquíssimos contratantes levam tudo isso em consideração ao produzirem suas noites. O preço do artista, como dizemos, é “colocado”. Eis a grana (isso quando não for porcentagem de bilheteria), e você se vira com o resto. Não estou aqui para desafiar a matemática. Nem para apontar dedos. A ideia deste texto é apresentar um fato:
O músico se fode para manter uma agenda que o permita cultivar uma base de público e isso pode, subitamente ou aos poucos, tirar sua vida.
Assista a qualquer filme biográfico sobre as lendas do jazz.
Quando Michale Graves, da banda Misfits (também pouco antes da pandemia), abandonou a turnê brasileira na metade e se meteu num avião de volta para casa porque não aguentava mais “dormir em sofás”, grande parte do público brasileiro considerou uma “frescura” e um “desrespeito”. Que espécie de punk ele é?
Artistas não são superhumanos. E a podridão só é divertida quando é uma opção.
Quem toca sabe que fizemos, fazemos, faríamos e faremos tudo de novo. Porque somos adictos da arte. Ela nos move, nos sustenta e sim, nos salva.
Mas é perverso que, tendo consciência deste nosso vício, os que produzem, contratam e pagam ingresso finjam não perceber que as condições são geralmente degradantes, perigosas e em tristes casos, fatais.